segunda-feira, 6 de junho de 2011

Pedras na Janela

Foto de Nara Marx
"como alguém que lhe apagasse a luz
vedasse a porta
e abrisse o gás"
Pedras na Janela
(Pseudônimo: AlaId)

Significação. Enquanto andava, procurava. Liberdade. Uma infindável dor no peito fazia dias, fazia meses, fazia anos, fazia existência.
Queria abandoná-la em qualquer lugar, não agüentava mais. Sem dormir, acordava com ela; algo que gritava em seu peito e parecia querer matá-lo.
Dói.
Não queria mais chorar, não queria mais ser infeliz porém chorou e o era.
Doía. Talvez se apertasse os passos, corresse, tropeçasse, talvez isso faria com que as lembranças fossem perdidas e com elas a dor mas o medo era de reencontrá-las – porque o termo perder nos remete, inconscientemente, ao reencontro; fato este que não acontece quando perdemos moedas de um real no vão do sofá. O medo era de não perdê-la jamais.
A manhã, muito cedo, era linda e morna. Diria até um pouco molhada  da chuva da madrugada. Estava tudo em seu lugar e o percurso era quase o mesmo. Não havia ninguém; poucos carros indo e vindo.
Por que não havia ninguém? Por que nuncaninguém? Era preciso um médico para sarar sua dor. Quis gritar mas teve vergonha - como sempre:  sempre tem vergonha, o que o torna covarde.
Será que ninguém sentia?
Isso era óbvio, se houvesse uma proliferação da dor de cada um, se todos atentassem à dor de todos, o mundo iria estagnar, sentar e chorar, melhor ainda, sentar e doer. Acatou: “cada um com a sua dor”. A dor dele não interessava a ninguém; poderia ocupar alguns minutos de um amigo ou outro, mas dificilmente alguém iria sentar ao seu lado, limpar suas chagas, apoiá-lo e esperar sua recuperação. Todos tinham coisas para fazer. Todo mundo tem coisas para fazer, não é?!
O mundo acaba para uns e para outros está nascendo - sabia - não queria mais chorar de dor.
queria entender.
queria não mais doer.
Estava sozinho e não conseguia levantar.
E como conseguiria? Tudo estava impregnado. As cores, os cheiros, os outros. Tudo. Tudo que não o deixava em paz. Esquizofrenia agudaque termo mais  “nelsonrodriguiano”.  Suas mãos formigavam. Elas formigavam quando ele estava prestes a ter um lapso nervoso. Que da dor, que da ignorância.
Lembrou dos olhinhos brilhantes que lhe perguntaram: - Por que você chora? – Lembrou-se que disse que era por nada. Mas, oras, ninguém chora por nada! E então olhinhos brilhantes se calaram e ele não queria silêncio, queria um abraço e teve vergonha de pedir.
Teve vergonha de si. Doía. Deixou de andar, começou a correr, mas não passava. Sua respiração estava ofegante mas não passava. Desespero. Des-esperança. Tomou um caminho que pouco percorria e lembrou-se de que o fazia quando não chovia todas as noites; o percorria quando o Sol brilhava ou a ilusão de que havia uma luz; como quiserem interpretar.
Parou no topo daquele viaduto, uma artéria da cidade que ligava um bairro nobre à região central. Havia pouco movimento -  para ele ainda era cedo.
Pela  primeira vez a dor do cansaço não sobressaiu à dor de sua existência. Era tática: corria muito, cansava o físico ao extremo o que, por horas, substituiria sua dor. Não dessa vez.
do topo viu toda cidade, o vento azul soprava em seu rosto; fumacinhas de uma fábrica ao longe, casinhas perdidas. Perdidas. Era alto porém não alto o suficiente para matar alguém, mas tudo é relativo, para um tombo bem caído até um beliche é uma ameaça descomunal!
Como eram belos os dias, as músicas, violinos. Dor. Frida – famosa pintora – viveu com a dor e ainda satirizou-a, manipulando-a em suas obras. A verdadeira arte: criação e criador se misturavam numa bela poesia. Frida foi forte. Há dois tipos de pessoa: as que conseguem e as que não conseguem viver com a dor, pois esta mostra que estamos vivos, morrendo aos poucos e não são todos que aceitam essa verdade. Não são todos que aceitam que o homem está num estado de putrefação constante.
A grama crescia como a dor. Pobre, sabia que era impossível e não fez, não fez nada.
Como doía saber disso.
Viu ao longe um caminhão. Grande. Uma dor no peito bem maior que o caminhão.
E se aproximava. Azul. Grande.
Começou a gargalhar de medo: medo da vida, medo do regresso, medo de tudo.
Doía – mas ele iria se livrar dela. Então mergulhou: rindo e de braços abertos. Agora sua dor ia atropelar o caminhão. Isso! Agora sua dor sentiria dor – uma dor maciça, uma dor de ferro. O caminhão acertou-lhe o corpo todo em cheio, ou melhor, o corpo todo acertou em cheio o caminhão. Desespero do pobre caminhoneiro que, em estado de choque, brecou.
 O corpo caiu sobre o asfalto, não havia trânsito, não havia ninguém. Novamente estava , porém a dor amenizava e ele ria, gargalhava numa mistura de gozo e insensatez.
Olhou para o asfalto gélido viu sua dor se espalhar por todo ele. Era vermelha. Ficou encantado: a sua dor era vermelha! Será que a dor de todo mundo é vermelha?
Era tanta. Saía de todo o corpo, por todos os poros, pela boca, pelo nariz, escorria entre os dedos e entrava pelas frestas do asfalto e  ele gargalhava porque estava se vingando de sua dor! Esta agora seria esmagada pelos maiores caminhões, pelos ônibus, carros de família, bicicletas, pés... e ninguém saberia que ela está , como ninguém sabia que ela estava com ele. Ninguém poderia ajudá-la.
Estava se livrando dela. O mundo estava se livrando dele.
Com o corpo entorpecido e um sorriso na face, viu toda sua volta manchada de um rubro densocomo era grande sua dor.
Ela não mais lhe pertencia. Seus olhos derramaram lágrimas de prazer e antes de fechá-los pensou aliviado: agora passou.


(Nara Marx idos de 2004, revindos de 2011)